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A Máquina do Mundo


Um dos maiores poemas de Carlos Drummond de Andrade é "A Máquina do Mundo". A crítica é unânime em apontar esse poema como um dos pontos de amplitude máxima a que chegou o pensamento filosófico-existencial de Drummond. Ele foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno MAIS (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal Folha de São Paulo.

Escrito em 1952 em decassílabos brancos e publicado originalmente no livro Claro Enigma, o texto é "a retomada de um célebre episódio de 'Os Lusíadas', de Luís de Camões. Nele, tal como acontece a Vasco da Gama, a totalidade do Universo se apresenta à visão do narrador -que, no entanto, desencantado, lhe dá as costas.

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A Máquina do Mundo

E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los, se em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte, a se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma ou sopro ou eco o simples percussão atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável, em colóquio se estava dirigindo: “O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda pérola, essa ciência sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular, que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste… vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios, o que nas oficinas se elabora, o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento, os recursos da terra dominados, e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre ou se prolonga até nos animais e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que tantos monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene sentimento de morte, que floresce no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance e me chamou para seu reino augusto, afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas presto e fremente não se produzissem a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando, e como se outro ser, não mais aquele habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade que, já de si volúvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas; como se um dom tardio já não fora apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mão pensas.

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